27 de dez. de 2010

o encontro encontra o museu encontra o encontro

Do site Overmundo

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Viktor Chagas · Rio de Janeiro, RJ
Me dê um museu e eu o preencho, disse certa vez Pablo Picasso, numa daquelas citações que perdem seu contexto e viram objetossauros da memória. Preencher um museu, hoje se sabe (e Picasso já o compreendia), não é tarefa meramente material. Muito da magia desses prédios de antiquários reside justamente no espaço entre o objeto e sua recepção pelo visitante. Um espaço bastante curto e sutil chamado apropriação. A apropriação é nada menos que a instância particular de aproximação entre estes dois contextos históricos e identitários distintos, sujeito e objeto - e pode ser representada pelo instante fugaz do encontro. Todo museu é um lugar de encontros. Talvez por isso tenha sido tão apropriado ser apresentado ao projeto-em-construção de Regina Casé, Hermano Vianna e Gringo Cardia a partir da mediação de Heloísa Buarque de Hollanda, justo no Rio de Encontros, ciclo de seminários e mesas redondas, organizado pelO Instituto em parceria com o CESeC, na Casa do Saber.

O projeto em questão chama-se
Museu do Encontro, e aponta para a tessitura de saberes trabalhados pelos seus três idealizadores, famosos (juntos e misturados ou em esforço solo) pelos trabalhos realizados em belos exemplos de cidadania. Regina, por exemplo, sempre falou da muvuca. Seu lugar de fala ficou mais claro quanto mais a faceta apresentadora se sobrepôs à atriz nacionalmente reconhecida. Grande comunicadora, ela já havia trabalhado (no Programa Legal e no Central da Periferia p.ex.) por várias e várias vezes com Hermano, antropólogo, pesquisador musical, sempre muito inteirado das novas tendências na internet e na vida social. Hermano estuda o funk carioca desde os anos 1980, tendo acompanhado uma (r)evolução histórica de perto. O samba também sempre esteve em sua mira. E, vale lembrar, o Overmundo é uma de suas crias nesse longo caminhar em busca do olhar sobre a diversidade cultural. Gringo é artista plástico, designer multimídia e cenógrafo. Já trabalhou com uma grande gama de projetos sociais, sempre em parceria com organizações como a Cufa, o AfroReggae, o Nós do Morro etc. Ele é ainda responsável pela escola Spetaculu, que atua na formação de jovens de periferia para o trabalho em produções artísticas. É curioso pensar que, como propuseram Gringo e Regina no último dia 27 de outubro (lá se vai um longínquo dia 27, desde quando este tema se tornou pauta, até o dia em que efetivamente o materializei por aqui), dentre todas as atividades que já desempenharam, o "encontro" é o que os une. De forma poética, não só o museu, mas toda a vida é mero palco para o desenrolar dos mais inusitados encontros. E um encontro desses três não poderia resultar em uma ideia menos instigante.

O Museu do Encontro, no entanto, no discurso de Hermano, vai além do museu. É também uma escola. Um espaço não só para a educação para o encontro mas também e principalmente para a formação, capacitação e abertura de horizontes para jovens de periferia e jovens de classe média que integrem turmas em cursos livres de comunicação e novas mídias, profissões cuja absorção pelo mercado tem representado uma oportunidade grande para... o encontro. O único adendo a isto que pode e deve ser feito, é claro, é a perspectiva de que assim como todo museu é um lugar de encontro, todo museu é um museu-escola. Pois que, como todo teatro que não existe sem uma coxia, o museu não se sustenta de pé sem pesquisa e formação de profissionais para funções a serem executadas na reserva técnica da instituição. Museu não é só exposição, afinal.


A ideia de um museu que se aproxima da dinâmica da
economia criativa e que tem interesse de explorar à exaustão recursos tecnológicos para estimular a interação dos visitantes e entre os visitantes também encontra eco nas melhores expectativas que um encontro pode proporcionar. É um museu que se distancia da lógica tradicionalíssima do antiquário. E, eu completaria, se aproxima "perigosamente" da lógica do museu-espetáculo - aquela exibição de instalações de encher os olhos mas pouco trabalho efetivamente memorialístico. A trajetória de cada um desses personagens que o idealizam, entretanto, em alguma medida, tranquiliza o horror de que este venha a ser só mais um Museu do Futebol, ou da Língua Portuguesa, ou do Amanhã. O Museu do Encontro tem tudo para ser um museu de grandes novidades.

Museu, enfim, é espaço para encontros. E o que falta ao Museu do Encontro, como bem frisado por Regina, é justamente
encontrar o seu espaço. Há o sonho, cultivado desde antes de ontem e antes da Rio 2016, de que o museu fosse sediado no Porto, Centro do Rio de Janeiro. O lugar chegou a ser escolhido um par de vezes, mas as complicações de se trabalhar em uma área em que os espaços foram quase que inteiramente loteados ao longo da História entre as três dimensões do poder público – municipalidade, estado e União – são tantas, que a busca ainda não chegou ao fim. O Museu do Encontro ainda não encontrou seu espaço na cidade. Mas há de fazê-lo.

Aliás, um museu antigueto, como diz Gringo Cardia, o que o credenciaria a diferenciar-se de outras experiências de museus comunitários, uma vez que, aqui, o objetivo não seria construir um discurso endêmico comum, mas abrir espaço para o encontro de novas identidades. Calafrio de quem
estudou de perto uma experiência pioneira de museu em favela e sabe que, a despeito dos 60 ou 70% de visitantes que mantém alguma relação íntima com a localidade, a circulação em torno do museu comunitário torna-o tudo, menos um gueto. No entanto, reconheço as boas intenções e a experiência acumulada em torno justamente das disputas que envolvem a construção dos conceitos de centro e periferia. Bem notado: como apontaria Wacquant, o encontro é o antídoto do gueto. E, aí, a fala de Gringo é certeira.

Nesse sentido, o que me toca como algo de mais inovador no museu que capitaneiam é menos a sua proposta de aliar (ou
encontrar) culto e exibição, escola e teatro da vida, exposição e capacitação, objetossauros e novas tecnologias, e mais a sua obstinada ideia de proporcionar e memorializar o discurso sobre o encontro. O encontro que pode ir da chegada dos colonizadores às praias indigenatas, ao surgimento do samba e da bossa nova. Frente a isso, todas as traquitanas discursivas soam mero deslumbramento. O encontro – que pode se dar no prédio de concreto ou no espaço aberto do ecomuseu – tem memória. E essa descoberta é a jazida de longe mais preciosa que o lapidário do projeto maneja. O encontro é, talvez, matéria-prima e principal tecnologia (social) do museu - historicizado, então, pode tornar-se identidade urbana particular do carioca. Afinal, diria Hélio Oiticica, museu é o mundo. E o que na vida não é feito de encontro... se até mesmo os desencontros não fazem mais do que nos colocar diante do novo?